Hã... queres que comece ou queres começar tu já a falar daquelas coisas mais práticas.

Eu vou falando alguma coisa da essência deste Kung Fu. Este Kung Fu tem sete fases, começa pela primeira fase e a primeira fase tem a ver com o trabalho físico, e logo a parte de entrada neste Kung Fu é muito física.

É um Kung Fu externo...

É um Kung Fu externo sem dúvida; ou seja, é um Kung Fu em que trabalhas de fora para dentro, até chegar ao ponto de dentro para fora, até chegar a uma altura onde já não é mais dentro nem fora, é uno; porque as coisas têm que vir sempre de dentro para fora, não é? Só que às vezes o de dentro para fora tem que ter um estímulo exterior, ou uma obrigação, uma coisa visível, cumprir, ter qualquer coisa realizado, os músculos feitos, o trabalho feito, isso tudo leva-nos ao nosso interior. E este Kung Fu sem dúvida que é um trabalho externo, e o primeiro trabalho externo é o físico. Nós somos como sete camadas - abres esse livro [Tantra, do Rajneesh] - e vais ver que é como a cebola em que trabalhamos a primeira, trabalhamos a segunda, por aí fora, até chegarmos ao nosso ser.

E também há sete fases [no Kung Fu To'a]...

Sim, sete fases, exactamente...

Mas a primeira fase [sequência de movimentos] não é mais física que as outras...

A primeira fase é a fase mais física, ou melhor o primeiro trabalho é o trabalho mais físico.

Por isso é que eu estava a perguntar, como há sete fases podia ser que houvesse sete trabalhos...

Há, são sete trabalhos, o que não quer dizer... o último trabalho manifesta o físico, mas não é centrado no físico. Os trabalhos mais avançados (5ª fase e coisas assim não podem ser feitos com a mesma atitude com que se faz a primeira fase. Porque se não, não se consegue, porque um é em termos de físico, em termos de matéria, o outro tem de ser, pelo contrário, centrado noutro centro, que é o centro mental, o centro 'nós não somos o corpo, o corpo é um perfeito instrumento'. Então o primeiro trabalho é um trabalho físico, é o trabalho de moldar o corpo, é o trabalho de sentir o que é que é o corpo, quando é que ele está em pleno, quando é que ele está em vazio, o que é que nos faz andar, a prática, o que é que nos faz ter energia, etc. Então é a estrutura de manifestar o Kung Fu, que é o físico. E as técnicas também têm a ver com isso, são técnicas com frequência muito menor, ou seja têm menos subtilezas, menos pormenores por unidade de tempo do que as outras, ou seja, muito menos complexas. E pronto, é o trabalho de estrutura, como se fosse uma luta assim um bocado primária, estás a ver?, de tipo agarrar num pau e vir com ele com toda a força e bater e não o esgrimir.

Pronto, então tem as nossas técnicas, têm a ver com isso, é uma energia terra, que tem a ver com os animais mais pesados tal como os touros, os búfalos, os tigres e outros assim. E pronto, desenvolvemos principalmente o uso do físico.

Estás a dizer, se estou a perceber bem, que o objectivo é conseguirmos, para atingir o último objectivo que é ter consciência de tudo e de todas as fases, temos primeiro de ter consciência do físico, primeiro começamos por aí.

É, por isso é que é externo, de fora para dentro.

Porque é que há pessoas que escolhem o externo?

Porque é assim, o externo é o mais óbvio, se a gente não tem consciência cá de dentro, vai cá falar em coisas... 'que não existem'?...

Então as pessoas que já têm mais consciência dessas coisas vão mais para o interno?

Vão mais para o interno. Agora isto é um ponto de partida, é uma coisa abstracta, uma coisa mental. Ninguém pode dizer que é uma coisa completamente externa ou completamente interna.

E na prática, as pessoas que vão para o Kung Fu podem sentir coisas diferentes... porque eu por exemplo quando comecei o Anatova, aquilo que me mexeu mais foi a coisa da energia.

Pois, exactamente, e na nossa escola isso são pontos de partida, são referências, já o Bruce Lee dizia 'interno e externo não existe, existe só um Kung Fu, não existe interno nem externo'. Há uma altura certa para embarcar no corpo, há uma altura certa para na energia, há uma altura certa para embarcar nos feelings do exterior, há uma altura certa para embarcar no teu esquema, na tua concepção, há uma altura certa para tudo.

Mas então porque é que nós não podemos mudar a ordem das fases?

Porque é uma espécie de... tem a ver com a teoria tibetana dos sete chacras que se começam a trabalhar como um pagode e com um pagode não se trabalha de cima para baixo, trabalha-se de baixo para cima, percebes? Só que este trabalho já tem ligação com o mais alto, quando fazes o andar de baixo, já estás a pensar que tem que aguentar os outros todos. Ou seja, não fazemos isto com o sentido de matéria, quando trabalhamos a primeira fase não fazemos com o sentido de 'isto é que é o resultado', fazemos já com os feelings de algo mais avançado, por isso é que é muito importante os mais avançados darem as aulas, os mestres e não sei quê. Porque não estão a fazer as pessoas primárias, estão a fazer as pessoas 'a acordar o animal', não é 'cultivar o animal', é 'a acordar o animal'. E há que saber acordá-lo com gradualidade e coisas assim, já em função da última fase. E neste processo todo, já há pessoas que estão noutras fases mais avançadas em termos de consciência. Mas têm que trabalhar ali a primeira fase que é para poderem manifestar o Kung Fu, que é um trabalho assim mais fácil. Enquanto que há pessoas que têm que fazer o Kung Fu para se elevar, há outras que já estão num certo nível de elevação mas vêm manifestar essa elevação no Kung Fu, que no fundo as ajuda a manifestar essa elevação noutros sítios.

Ou seja, no aspecto da concretização...

No aspecto da concretização, no Kung Fu quem trabalha no aspecto físico ajuda também a concretizar no dia-a-dia, no que quiser, porque é a matéria...

E daí a questão também da flexibilidade e coisas do estilo, físicas...

Sim, sim, sim... Tudo o que é trabalho físico tem a ver com isso. Então a primeira fase é isso. Por isso o programa é, uma condição física especial para a primeira fase, uma técnica que é o Anatova especial para a primeira fase, e uma parte de dois a dois, e uma parte com uma certa espontaneidade que tem a ver com a primeira fase. E assim sucessivamente, as outras fases a mesma coisa.

A segunda fase é quando nos começamos mais a mover com o que nos rodeia, a segunda fase é a emoção, o que tem a ver com o movimento, não tanto com o vertical da terra, mas mais com o fluir das coisas. Também tem uma técnica, também tem uma condição física, também tem isso, só que aqui... isto é um pagode, ou seja, o pagode de início só tem a primeira parte, e depois tem a primeira e a segunda, depois tem a primeira, a segunda e a terceira. Ou seja, não são trabalhos separados, é trabalho acumulado.

Diz-me uma coisa, essa parte da emoção já tem a ver mais com a relação com o outro, ou também...

Já, já tem muito mais a ver com a relação com o outro

O fluir, já... tem de haver alguma coisa...

Já tem muito mais a ver [a segunda fase] com subtilezas. Por isso o dois a dois, na primeira fase tem que ter regras muito mais rígidas, do que com o passar do tempo. Exactamente porque ainda é um trabalho assim de quantidade e de matéria, com pouca vida. Porque é a água que vai trazer exactamente a vida às coisas.

Mas a segunda fase... eu estou a perguntar isto porque nós normalmente ligamos a segunda fase à emoção, não é? Ao fluir e à emoção também. E a emoção tem a ver muito com a nossa relação com os outros.

Não... a emoção, como no inglês [e no francês é-motion] vem de motion/movimento -> emotion/motion. Tem a ver com o movimentar das coisas, nada é estático, e nós movemo-nos com as coisas, as coisas movem-nos e nós movemos as coisas, é tudo assim. Que engloba aquilo que estás a dizer, a relação com o outro, mas já é muito mais, é o movimento.

A relação com o exterior talvez...

Sim, e principalmente começamos a ver que nós, isto aqui que somos nós [o corpo e isso] começa a haver mais coisas: nós não somos o corpo, nós não somos a emoção, estás a ver? É que há coisas aqui... Pronto. O três é a razão, e assim sucessivamente. Porque depois também há uma condição física especial para cada fase que ajuda a preparar a expressão dessa fase, porque a condição física é para preparar a expressão. Uma técnica, que ajuda a exprimir e que ajuda a expressar isso, e que ajuda a criar condições para essa expressão. Porque isto é tudo uma pescadinha de rabo na boca: tudo prepara e ajuda. E também a parte espontânea. Todas as fases vão tendo sempre isso [preparação física, técnica e espontaneidade]. A terceira fase é a razão, a quarta é a transcendência, é o fogo, é o queimar para renascer, fogo, uma coisa que fica tão intensa que queima, que morre para depois renascer do fogo...

O Fénix...

Então a quarta é o meio caminho, entre o um, dois, três e o cinco, seis, sete. Não é interno nem externo, é a ponte, é as duas coisas, é o positivo e o negativo, é o [explosão]. Então a partir daí entra-se no negativo que é o mental, o silêncio, e logo aí entra-se numa fase que é muito puxada, que é a quinta e é só à base de pontapés. E aí a gente tem de mostrar que não é o corpo mesmo, de uma maneira muito... quando se quer. Nós não sermos o corpo não é rejeitar o corpo, é ter a possibilidade de: quando nós queremos somos totais com o corpo, quando não queremos, desaparecemos.

Mas porque é que dizes isso, porque se fôssemos o corpo não conseguíamos fazer aquilo?

É muito puxada... é uma técnica muito puxada, não pode ser feita com o exterior do corpo, tem de ser feita com o interior. Tem que se ter já um bom nível de desligar-se do corpo que aquilo é um cansaço danado. Depois tens a sexta que é muito leve e tem uns timings e uns contrastes de tempos muito subtis e parece que descobre-se coisas dentro de coisas. Depois há a sétima que já tem a ver com uma preparação para ligação com o todo, com a transcendência, total, cósmica. E... pronto, no fundo cada uma tem os seus trabalhos. Agora é assim, as escolas também têm fases, e na nossa escola tem a sexta fase. Logo é óbvio que como nós não podemos fazer aulas separadas para fases, e às vezes até era bom. Era bom as duas coisas, aulas separadas para fases e aulas assim como nós temos [mistas]. Mas como não é possível, por causa das compatibilidades de uns poderem e outros não poderem, que já experimentámos e não deu, acontece é que às vezes há pessoas da primeira fase que estão a levar com conhecimentos e ensinamentos de coisas muito subtis e vice-versa e até é giro porque no fundo as pessoas não estão principalmente em fase nenhuma, estás a ver? E há pessoas que entram lá e estão já prontas para receber ensinamentos muito mais avançados e em pouco tempo fazem as técnicas muito bem feitas, e depois eu digo assim 'há fases em pouco tempo bem feito, então ainda podes fazer muito melhor'. Ou seja, tudo é bom, as pessoas que levam o seu tempo a fazer as fases, é porque é mesmo assim, as pessoas que fazem em pouco tempo, ainda podem fazer muito melhor. Porque isto tem a ver com a pessoa, com muita coisa. Pronto, falámos em fases... agora isto tem muito que se lhe diga, todo esta trabalho físico tem muitos pormenores. Depois no final temos a tese, já falámos sobre a tese [na entrevista anterior], porque a pessoa ao longo do tempo vai-se encontrando no Kung Fu, e vai vendo quais são as áreas em que lhe interessa mais trabalhar. Porque estas sete fases têm a ver com sete consciências, sete tipos de homens, sete tipos de pessoas, estás a ver?, e a pessoa escolhe aquele trabalho que tem a ver mais consigo. Que em princípio teria a ver também com a sua vida, do dia a dia, e depois especializa esse trabalho naquilo que lhe interessa mais, e depois há pessoas mais filosóficas, outras mais racionais, quando falo de filosófico é no sentido metafísico, do saber, e quando falo do racional é mais no aspecto do conhecimento, mais...

científico...

científico, para o corpo, para a mente; outros são capazes de ter um conhecimento mais poético, que tem a ver com as emoções... Cada um exprime aquilo que tem a ver mais consigo, com o seu trabalho; a uns interessa-lhes mais a relação com os outros, a outros a relação consigo próprio, a outros a relação com o mundo, a outros com o além (risos), a outros... sei lá... Cada um depois dá o ênfase que quer.

Diz-me uma coisa: porque é que ainda não há ninguém a fazer a sétima fase?

Porque tudo é na altura certa, e não foi a altura certa. Aliás, acho que todos nós temos um crédito de técnicas para a frente que só ainda não as temos só porque falta trabalhar técnicas mais para trás, porque no fundo mantemos a essência deste Kung Fu: ser muito exigente na técnica, muito perfeccionista. Só que de uma maneira diferente, enquanto eles [diziam]: 'se não estiver perfeito não passas para a frente', nós não: 'passa para a frente' mas 'não te esqueças: perfeição'.