FAZ O QUE QUISERES… Era esta a inscrição gravada no amuleto da Princesa Menina que Bastian trazia ao peito,

Faz O Que Quiseres...

Este podia ser o mote chave de uma vida, a inscrição oculta no coração e mente de um homem.

Mas o que havia para fazer?...


A noite estava cheia de estrelas. Milhares de milhares seria um número insignificantemente pequeno para as descrever. Os homens viviam no meio delas, mas fingiam não as ver. A pequenez do cubículo que tinham construído à sua volta permitia-lhes olhar para um mundo criado por eles. Que só existia na sua imaginação, naquela dimensão minúscula, fraccionária, que tinham criado para que as suas vidas fizessem sentido.

Mas à noite o Universo abria-se sobre o planeta como uma casca de nós subitamente partida, revelando ao interior a vastidão do mundo exterior.

Bastian sentiu, não com os olhos mas com a própria existência, a existência do mundo infinito, por cima dele, por dentro dele, em cada poro milhares de existências. Milhares de milhares seria pouco para dizer cada parcela de ser existente em cada fragmento de realidade.

Compreendeu que o princípio do mundo, regendo quer a distância, a complexidade ou o sentido, era a quase-infinitude, que é sempre mais complexa do que a simples finitude ou infinitude. Este era um infinito que quase se desnudava, mas não o chegava a fazer, embrenhando-se, antes disso, noutras elucubrações.

Também foi dito que se algum dia alguém descobrisse o significado deste universo ele seria instantaneamente destruído e substituído por algo ainda mais intricado e bizarro. Mas Bastian tinha chegado ao fim do universo. Compreendera que todo o infinito era um acto de amor.

Uma cena, um acto, uma peça, uma oportunidade para desvendar, não só o Cosmos, mas o Amor, o que está dentro e fora de nós. Todos os cambiantes e todos os sabores. Descobrira o sentido de "tudo".

Bastian usava agora ao peito a inscrição "FAZ O QUE QUISERES", mas já não havia nada para fazer. O mundo era perfeito como era. As pessoas aprendiam, do seu Sol, a descobrir a noite, dos prazeres ao infinito, do mais visível ao mais subtil, aprendiam a Amar, e que sempre tinham sido Amadas e que essa era a razão mais profunda da sua existência.

E agora o mundo já não tinha mais nada a dar a Bastian. Nem ele ao mundo.

Ansiava pelas estrelas e por mais do que as estrelas. Ansiava pelo outro lado da noite, para lá do finito e do infinito estava a porta do Adeus. A porta em que ele, finalmente, se misturava com todo o universo. Uma mistura que já estava feita, desde sempre, mas que agora ele compreendia e realizava em si.

E parecia-lhe que não havia nada mais a fazer ou a conquistar. Nada mais a perder.

Só A Beleza dentro dele Perdurava.

...

Cap. 1

A Despedida.

- Olá, então por aqui? Há muito tempo que não te via!
- Sim, tive de sair, mas foi por pouco tempo, já regressei. Em breve terei de voltar, e então partirei de vez e não voltarei.
- O que queres dizer, porque vais partir? Para onde? Porquê?
- Na verdade vou para onde sempre estive, vou para o centro de tudo.
- Estás bem?
- Nunca sentiste que entre ti e o exterior havia uma ligação profunda, quase inefável? Como se tu e todas as coisas que visses, cheirasses e tocasses fossem, num certo sentido, uma só?
- Acho que não...
- Então porque é que te preocupas com as flores? Porque ficas alegre com um belo dia de sol, porque ficas triste com as lágrimas dos outros, e se te dissesse que vou morrer, não sentirias que comigo morreria uma parte de ti?
- Sim, em cada flor sinto uma parte de mim; e no meu amado, nos seus dedos sinto os meus, e na minha pele a sua. Quanto aos dias e às noites, é como se fossem os dias e as noites do meu espírito, e os seres que por eles navegam, os peixes numa noite enluarada, os gafanhotos e morcegos, é como se fossem seres que andassem por dentro de mim, bichos da minha imaginação. Apesar de eu ser diferente de todos eles!
- Diferente sim, mas não desigual.
- Não percebo o que queres dizer.
- Percebes sim. Em cada ser há uma luz, um espírito, e esse espírito emana sempre a mesma onda, é o mesmo espírito que encontras em todo o lado, o espírito do amor, que está em ti e em cada coisa que olhas e que floresce.
- Mesmo assim não percebo onde queres chegar.
- Tenho o desejo de partir, partir para o centro de tudo, onde a relação se dá. Onde já não és tu nem o outro, mas qualquer coisa no meio, entre eles e ao mesmo tempo superior a eles, que os engloba e explica sem contudo se misturar.
Descobri o caminho para isso. Fica no centro da Galáxia. Mais precisamente no centro do Universo.
- Mas isso é impossível. Não percebo de que é que estás a falar, mas o centro do universo deve ficar incrivelmente longe.
- Não. De certo modo o universo é infinito, o que quer dizer que o seu centro fica em qualquer lugar. Em qualquer lugar estamos exactamente à mesma distância dos limites do universo. Quer seja para cima, para baixo ou para os lados, estarás sempre à mesma distância de todos os limites. Estarás exactamente no centro, porque a distância é sempre infinita, para onde quer que olhes.
- Deves estar a falar chinês. Mas deixa ver, estás a dizer que vais para o centro do universo, e o centro do universo é 'aqui', onde quer que estejamos. Então estás a dizer-me que vais para aqui. Ou seja, já estás aqui, portanto não vais para lado nenhum!! É isso?
- Será isso? Vê bem, se cada ponto é o centro do universo, então o centro não será este ponto, mas o ponto que corresponde a todos os pontos. O centro do universo não está 'aqui', está também aqui. Mas é todos os aquis, todos os agoras e todos os aquis e agoras que já foram e serão e são. O centro do universo é aqui, é dentro de ti, e é em todos os locais onde haja alguém que ame, ou algo que possa ser amado.
- Mas então não podes ir! A não ser que te dividisses em infinitos bocados e te espalhasses por todo o tempo e espaço que já existiu! Ou estou a ver alguma coisa mal?
- E se cada bocado de tempo e de espaço não fosse mais do que uma ideia? Já pensaste como em todo o lado as leis são sempre iguais. Recebemos a luz vinda das estrelas, emitida há milhares de milhões de anos. E a luz é a mesma, as estrelas que a emitiram funcionavam com base nas mesmas leis, os mesmos átomos, as mesmas equações as compunham e regiam. Já pensaste que, em cada momento, em cada lugar, tudo é exactamente igual, desde que olhemos da maneira certa?
- Continuo sem perceber, vais-te transformar numa lei física??? (risos)
- E que tal... naquilo que está na base da lei?
...
E se fosse o Amor? E se todo o universo fosse um único, gigantesco, incomensurável, acto de amor...


Cap. 2 - Dissolução

- Vais morrer?
- Vou viver?
- Vais-te separar de mim?
- Vou encontrar todas as coisas?
- Não te interessas, não me queres?
- Não me amas?
- Mas eu quero-te aqui, assim, ao pé de mim.
- Estarei em todas as coisas, em todos os momentos, mesmo dentro de ti, mesmo nos momentos mais íntimos.
- Será como sempre foi...
- Só tens, terás, de acordar e sentir. Eu estarei lá, desde o princípio dos tempos que estou. E quando estiveres, também lá terás estado desde o princípio dos tempos.
- Mas porquê, se podes fazer TUDO O QUE QUISERES?
- Porque não há nada a fazer.
- Como?
- O mundo é perfeito!
- Como?
- O mundo... é perfeito.
- ...
- ...
- Não acredito que digas isso. Há fome e as pessoas morrem por ódios e guerra...
- E no entanto temos uma estrela que transforma em cada segundo 4 milhões de toneladas de matéria em luz... não chega para nos alimentar?
- Porque não lutas para dizer isso ao mundo. Talvez salvasses uma vida, ou mais até...
- Salvá-la de quê? Da vida, do que lhe dá prazer?
- Falas uma linguagem que não compreendo (chora)...
- Se alguém não quer verdadeiramente a guerra não achas que alcançaria a paz? Olha bem à tua volta e dentro de ti. Já alguma vez desejaste verdadeiramente uma paz que não fosses capaz de alcançar? Quando há exércitos chamam-se ainda mais exércitos, e para acalmar uma guerra fazem-se muitas vezes guerras maiores. Mas para quem deseja a paz não virá ela de forma quase instantânea, mesmo no meio da maior invasão? E de onde virá essa paz, esse amuleto, essa couraça, esse destino, senão do próprio universo. Não compreendes que para alcançar basta buscar? Pede e te será dado, bate e todas as portas te serão abertas. Não percebes que somos nós que decidimos viver debaixo deste telhado, escondidos do mundo. Que fomos nós que recusámos o amor, que ninguém nos obriga a viver assim, mas que somos simplesmente incapazes, ainda não aprendemos a viver melhor, ainda nos falta crescer, para viver de outra maneira? Não compreendes isto?
- Não compreendo nada, só sei que me queres deixar. Eu que te dei tudo, eu que fiz tudo por ti, eu que morreria por ti. Tu não me amas, estás louco, deprimido, algo te tapa a visão. Mas vai passar meu Querido Amor, tenho a certeza que irá passar. É apenas um lampejo de insanidade, precisas de descansar... é tudo, de descansar...
- ...
- (mostra-se preocupada com...)
- Tens medo de te sentir só. Mas não ficarás só, garanto-te. Agora estás distante de ti. Vives distante de ti própria. E por isso precisas dos outros para sobreviver, para te justificarem, para te dizerem que está certo aquilo que fazes. Mas em breve deixarás de ser assim. Criarás asas para um céu feito só para ti e...
- O que dizes? Não quero que vás! Não quero que partas! Proíbo-te, terminantemente. Proíbo-te ouviste? Se partires partirei também. Morrerei como tu se achas que é assim tão bom. Porque te incomoda ouvir isto, se achas bem assim...
- Não estás preparada. Há ainda muito para aprender aqui... A vida é bela, eu não morrerei, viverei mais... é apenas isso. (Vou ao encontro da Vida)
- Ahhhh (in-lucidez e morte, dor, receio, rejeição)
- Ficarei, ficarei por ti. Não chores. As estrelas podem esperar. As estrelas esperarão sempre, e, de qualquer modo, já estamos com elas. Não te preocupes, meu amor, meu coração, minha candeia. Ficarei contigo até que o fim dos dias nos separem... Ficarei contigo para que juntos, amparemos e embalemos o amor. O amor que nos deu origem, o amor que nos espera, o Amor que é o nosso Destino... Dá-me a tua mão, que o nosso coração junto, batendo apertado, seja só um.


(Nota: 'Bastian', 'Princesa Menina', e a expressão 'Faz o que quiseres' são alusões ao livro História Interminável, de Michael Ende.)

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