Comentário ao artigo de António Zilhão:
Psicologia Popular, Teoria da Decisão e Comportamento Humano Comum



"O modo humano comum de agir [die gemeinsame menschliche Handlungsweise] constitui o sistema de referência por intermédio do qual interpretamos línguas estranhas". §206

Este é o insight genial de Wittgenstein (e que de resto acompanha as Investigações Filosóficas) que António Zilhão coloca no início do seu artigo e também no início da "tradição iniciada por Quine e prosseguida por Davidson", uma tradição que procura precisamente "uma caracterização independente do modo humano comum de agir".

Mas será possível caracterizar o modo humano comum de agir? Pelo menos de acordo com uma leitura rápida de Wittgenstein pareceria que não. Pode-se experimentar, viver, partilhar, o "modo humano comum de agir", mas parece precisamente uma das teses centrais quer do Tratactus quer das Investigações, que a linguagem não capta de todo essa experiência. Daí as limitações da actividade filosófica. É possível ver uma cor mas não é possível explicar a cor, não é possível caracterizar a cor através da linguagem (senão seria possível explicar o que é o vermelho a um cego de nascença). E no entanto é o facto de não sermos cegos que nos permite falar e entendermo-nos acerca das cores, que nos permite partilhar uma linguagem acerca das cores.

Por isso parece que qualquer tentativa de 'caracterizar' o modo humano comum de agir estaria necessariamente destinada ao fracasso, pelo menos do ponto de vista de uma certa leitura das Investigações e para um certo público.

No seu artigo António Zilhão apresenta uma história sucinta sobre o modo como este conceito do "modo humano comum de agir" tem sido entendido.

Em primeiro lugar o "modo comum de agir humano" é substituído por um critério de 'racionalidade' que tem a vantagem de não estar limitado ao "modo de agir destas criaturas" (é universal). O critério da racionalidade é depois substituído pela teoria matemática da decisão... porque "não parece ter muito sentido considerar como racional uma acção baseada numa crença acerca de qual a melhor forma de agir que é simplesmente estúpida." (A teoria matemática da decisão é um modo de eleger as decisões mais eficazes como as únicas racionais.)

E ficamos com uma coisa do tipo:
"Considera-se uma acção como racional se e apenas se ela puder ser representada como resultando da seguinte sequência de procedimentos. Primeiro, a probabilidade da obtenção de cada um dos estados do mundo relevantes é multiplicada pela utilidade de cada um dos desfechos totais possíveis de uma acção. Segundo, os produtos assim obtidos são adicionados; à soma assim obtida chama-se a utilidade esperada de empreender uma dada acção. Terceiro, toma-se uma decisão para agir de um certo modo por meio da selecção daquela acção cuja utilidade esperada é máxima."
Ou seja: "die gemeinsame menschliche Handlungsweise" é na verdade um critério computacional!! Somos humanos na medida em que somos espertos e eficientes, em que funcionamos como máquinas bem calibradas.

Bem, isto é tipicamente humano: começar com um insight brilhante e acabar com um critério computacional!

No seu artigo, António Zilhão procura aparentemente regressar a uma interpretação mais fiel de Wittgenstein. Ele mostra que a teoria da decisão assume implicitamente
"que um agente humano se comporta na sua vida normal do mesmo modo que um apostador racional se comporta num jogo de apostas. Mas comportar-se-ão de facto os seres humanos como apostadores racionais?"
O título do §4 aparece como um bom augúrio: "Humanidade e Apostas Racionais" (quase como se fosse "Humanidade versus Apostas Racionais")

Mas a conclusão final é debilitante:
"as experiências de Tversky revelam que o melhor modo de interpretar certos conjuntos de escolhas humanas é aceitando que existem nos seres humanos, com alguma frequência, conjuntos intransitivos de preferências."
Quanto a mim, die gemeinsame menschliche Handlungsweise tem mais a ver com aquilo a que comummente se chama por "Humanidade", ou com o Gospel in Brief do Tolstoy, do que propriamente com uma teoria da decisão.

Wittgenstein afirmou claramente que "As proposições não podem exprimir nada do que é mais elevado." (Tratactus, 6.42) e eu entendo die gemeinsame menschliche Handlungsweise como algo muito 'elevado', como uma referência muito clara à Ética. Ver a última parte do Tratactus 6.4 e seguintes.