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Os grandes problemas da minha família, os grandes problemas do mundo. Viver regido por ideias, objectivos, cuja origem não sabem explicar, dos quais que a maior parte das vezes nem se apercebem, e quase nunca conseguem identificar. Por isso afirmam: eu sou: rico, do benfica, comunista, liberal, soft, despretensioso, apaixonado, engatatão... Tudo coisas que nos ensinaram a ser e a querer. Somos em parte bonecos pré-programados, se é pelo instinto ou pela biologia, não interessa, não é isso que nos dá mais ou menos autonomia.
É esta a minha crítica à sociedade e ao homem, às pessoas que fazem o meu dia-a-dia, e por isso talvez me chamem de 'esquizofrénico', um neologismo que substitui o 'herege' da Inquisição, todo aquele que não se adapta, que é capaz de ver as coisas de uma maneira diferente, perversa, e cujas ideias, que se podem alastrar contaminam de heresia, disfuncionalidade, ou loucura toda a sociedade. É preciso encarcerar os hereges, confundi-los com toda a espécie de doentes reais e misturar tudo para fazer da sociedade um lugar de paz, um lugar feliz, onde todos encontram o lugar certo para todos. Onde todos lutam pelo que devem lutar, onde todos temem o que devem temer, 'like a pig, on a cage, on antibiotics.'
Durante muito tempo pensei que a vida não tinha sentido, que as pessoas viviam para se esconder do sem sentido da vida, para tentarem esquecer que na realidade não tinham qualquer importância, e que aquilo que faziam, era, no todo ou na parte, insignificante, irrelevante. Mas hoje vejo que isso faz parte do nosso folclore. Uma tradição que nos ensina a procurar tudo o que devemos querer dentro da sociedade, mas como depois não tem nada para oferecer, acaba por nos convencer de que a vida é algo absurdo, e que a única hipótese de nos escondermos da verdade, é levar uma vida absorta em fúteis ocupações.
A realidade não poderia ser mais diferente. A vida é o terreno da liberdade, das sensações, do conhecimento e do encontro. Mesmo que nada reste da nossa memória ou experiência interior mais tarde (e aparentemente nada permanece) a vida pode ser uma aventura, uma descoberta, um prazer, uma missão, uma prova, uma alegria, um aperfeiçoamento, uma realização. o que quer que achemos do valor da vida e das coisas, há sempre uma maneira de realizarmos essa ideia, de desenvolver essa visão. O problema é que a sociedade não permite isso. Um dos problemas reside num facto tão simples que muitas vezes é ignorado. Hoje em dia quase ninguém precisa de trabalhar. Atingimos aquele ponto crucial da civilização onde a tecnologia e o saber nos deram as condições para sobreviver praticamente sem esforço.
Um país que tenha armas nucleares em quantidade suficiente e que disponha de um mínimo de tecnologia não terá apenas assegurado uma defesa contra a invasão mas também um modo de vida à vontade. A maioria dos produtos agrícolas é feita com um mínimo de recursos humanos, a distribuição encontra-se em grande parte automatizada e podê-lo-ia ser muito mais e as infraestruturas que garantem a distribuição de água, electricidade e informação já estão criadas. É claro que não falo da estupidificação em massa criada por uma vida absorta no consumo. Não estou a dizer que finalmente nos podemos tornar em vegetais. Mas a obrigatoriedade do trabalho, tal como é concebida hoje (30 e tal horas semanais para todos) é simplesmente o fruto da nossa idiotice. Poderia haver, como no exército, anos nos quais uma certa faixa da camada etária ou sexual, seria obrigada a fazer uma certa coisa (por exemplo estudar, nadar, conduzir camiões ou fazer política), no resto do tempo as pessoas seriam simplesmente livres de levar a vida que quisessem.
Mas isso levaria a que as pessoas não estivessem tão concentradas nas suas necessidades quotidianas, ficariam mais livres, poderiam pensar em tudo o que quisessem e fazer quase tudo o que estivesse ao seu alcance (o que é muiiiiito). Hoje vivemos a situação paradoxal de que temos cada vez mais hipóteses de fazer as coisas, mas cada vez menos vontade ou percepção de que as podemos fazer. Por exemplo podemos facilmente deslocar-nos para qualquer parte do mundo, estudar qualquer coisa, fazer qualquer tipo exercício, conhecer qualquer tipo de pessoa. Em vez disso vemos televisão e tentamos trabalhar no mesmo sítio e morar na mesma casa durante vinte anos ou mais. e no fim da nossa vida, estamos tão incrivelmente senis que, quando nos libertam das nossas obrigações e nos dizem: agora damos-te condições para viver sem nada em troca, és livre para fazer o que quiseres, vai! É como se soltassem uma ave há tanto tempo presa que se esqueceu que tem asas. E essas pessoas acabam por ser as mais infelizes, porque curiosamente, ficam sozinhas. Culpam então a sociedade, o estilo de vida que as pessoas levam, ou então a sua velhice e incapacidade para trabalhar. Na verdade elas sofrem de uma incapacidade, mas bem diferente. É que elas são, no seu dia-a-dia, incapazes de sonhar coisas novas, de as querer realizar, de arriscar. O mesmo acontece às pessoas novas, mesmo em países onde não estão ainda formados os grandes monopólios as pessoas preferem não arriscar o seu próprio negócio, não tanto porque saibam que é arriscado e que não têm capacidade para isso, mas porque é uma aventura, algo imprevisível e diferente, algo que não está dado, que é preciso pensar, inventar, fazer nascer de dentro.
Neste mundo que, da minha visão esquizo-herege, está absolutamente corrompido já que nele a sociedade não é o resultado da criatividade e liberdade aparentemente inesgotável do homem, mas a sua prisão, o seu treino cíclico, sistemático, para fins que não são os seus (repare-se que grande parte das nossas vidas se passa, ou se passou, a trabalhar para as grandes empresas) mas dando-lhe a ideia contrária (retribuindo a anuência com dinheiro e com a ausência de repressões). A sociedade é fundada em dois princípios: a mentira e o medo.