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Vai ser tão bom quando tiver a câmara! Tudo vai mudar, as pessoas vão ser diferentes e eu também serei diferente, porque, nessa altura, já poderei tirar boas fotografias. Poderei tirar fotografias das pessoas a rir e a chorar e elas ver-se-ão retractadas nas suas dores infames e prazeres salutares. Mas sobretudo poderei fotografar a natureza e recordar estas memórias que de longe em longe vão passando, dentro de mim, fora de mim. Agora terei um olho fotográfico, uma memória visual, inacabada, fora de mim. Agora sim poderei dizer: eu ando: eu estive aqui, eu fui-me embora mas antes deixei guardada a recordação de um novo amor.

Um amor que poderia ter sido, que poderia ser, mas que não foi.

Abandonei as águas deste rio, o sopé destas montanhas, a poeira das estradas que não levam a lado nenhum (mas também nenhuma estrada leva seja ao que for de importante), abandonei tudo menos a memória, a única coisa que vos lego. Na minha polaroide de sete esquinas, na minha memória visual externa, cinematográfica, antropomórfica, etnocêntrica, e até, há quem diga, pornográfica, ficará gravado tudo quanto sou, tudo quanto sei, para mais tarde vir a ser descoberto por alguém atinado comigo e que faça reviver estes tempos, estas saudades de uma casa maior. Gostava que também tivesse um gravador e que soubesse escrever um livro. Gostava que soubesse recontar a história da minha vida mesmo àqueles que nada soubessem e aparentemente nada pudessem saber sobre mim. Porque os grandes livros são aqueles que ensinam as coisas impossíveis.

Coisas como fazer amor, ou a solidão radical, ou até a honestidade radical e o amor livre. Enfim, livros que nos mudam, que nos deixam para sempre acompanhados de um sabor alegre ou amargo, pesado ou denso e leve e alegre. Enfim... fotografias como livros, livros como revistas, imagens como sabores.

Eis o que a minha camera despertará.

Não mais o mundo andará cego, sem saber por onde andar, não mais o ódio e a violência e a maldade. A minha câmara tomará conta de tudo isso, desenvolverá os maus e torná-los-á bons, pegará nos bons e fá-los-á ainda melhores tornando-os em exemplos, e fotografará os regatos e os rios e os montes e as serras carregadas de verdura e flores e abelhas e vespas e ervas daninhas. Mostrará tudo no seu contexto e em tudo se verá uma ordem, escondida apenas ao olhar infiel, ignorante, cego, descrente. Em todas as coisas, de todas as coisas se desprende esse amor, esse olhar, essa plenitude, essa vontade, esse desejo, esse poder.

De fazer tudo, tudo, tudo

E a minha câmara captará também isso e dirá ao mundo: Aqui está, a visão do Pedro Fonseca: eis o seu legado, eis o que deixou ao mundo:

Uma quantidade de visões

Uma quantidade imensa de visões

Uma quantidade bela e imensa de visões

Uma quantidade bela, imensa e verdadeira de visões

Verdadeira porque é dele, e porque as câmaras não mentem (só às vezes, quando não as sabemos utilizar ou ver). As câmaras, enquanto câmaras, estão condenadas a dizer a verdade, a dizer só a verdade, mas não toda a verdade, porque a verdade toda não está neste mundo, neste momento.

A verdade toda é algo demasiado precioso para uma câmara ou uma pessoa sustentarem. Ela não cabe assim de qualquer maneira num sítio qualquer, embora em qualquer sítio e de qualquer maneira não haja senão verdade.

A minha câmara é ínfima, pequena, vadia, desconcentrada. Ela mostra apenas o que eu sou. Tudo o que eu sou, naquele momento. O rio, a água, a casa e o verde do mar. A máquina mostra o exterior do que eu vivi. A câmara mostra a individualidade do momento, de cada momento

A câmara é, olhar comum, a vertigem comum, que todos podem acompanhar. A câmara sou eu.

Uma Olympus 490 D. Uma Olympus Pedro Fonseca 490 D.

Uma câmara chamada Pedro, um olhar chamado Pedro, uma atenção, um sorriso:

Pedro Pedro Pedro. Estás aqui, meu filho: anda, à mãe que espera por ti, e entrega / mostra as tuas imagens para serem contempladas por um outro ser.

Outro, Outro Ser

Ser

Contempladas

Ser contempladas por outro Ser

Eu sou, tu És.

És a contemplação de mim
A contemplação da minha imagem
És Eu
e Eu sou Tu,

a contemplação de mim em Eu/Tu

Mim

Eu/Tu

Mim em Eu/Tu

Eu/Eu? Tu/Tu?

Já nada interessa, já não interessam as diferenças

Vemos o mesmo objecto, sentimos as mesmas coisas

Eu/Eu Tu/Tu

Como estivemos sós tanto tempo
Como foi possível estarmos sós tanto tempo

Estávamos aqui há dias quando 'Eu-Só' estava e 'Tu-Só' estavas. Sós? Aparentemente sós! Decididamente sós. Porque não víamos os outros, porque os outros eram 'invisíveis'. Invisíveis.

Invisível é qualquer coisa que está lá, mas não se vê. É qualquer coisa que existe, mas não se vê. É qualquer coisa presente, mas que não se vê.

Invisível, agora, sou eu, para todos aqueles que não me vêem. Tenho mãos e pernas e braços, e sou visível para mim. Não sou 'invisível' para mim. Existo para alguém, existo para mim próprio. Mas, se ninguém me visse senão eu, quem me veria a 'mim' que me vejo a mim. Quem veria aquele que vê? E se fosse eu próprio invisível ninguém me poderia ver, nem eu próprio que me vejo a mim mas não aquele que se vê a si próprio.

É algo invisível aquele que se vê. Não se vê por mais ninguém. É invisível.

Existe alguém chamado Aladino. Hoje, neste mundo, existe alguém. Tem uma cara e uma vida e sente qualquer coisa neste momento. Aladino!!! Onde estás? Quem te perdeu, quem te amou, quem te roubou? O que pensas Aladino? O que sentes, o que vês?

É 'invisível'. Invisível.

Ele não existe para mim, não me influencia a mim. E eu estou sozinho por não ver tudo aquilo que existe, tudo aquilo que as outras pessoas existem e fazem e dizem. Mas mesmo que eu as visse, se elas não me vissem continuaria invisível. Mas é mais importante ver do que ser visto. A ver aprende-se tudo, a mostrar-se só se ensina, se é que se ensina.

Há quem queira ser visto, é estranho, é corrupto. Significa uma incapacidade radical de se ver... Significa ter uma câmara e não poder mostrar as fotografias. Afinal, se as tirei foi para alguém ver. Para eu próprio ver? Mas eu já as vi, fui eu que as tirei afinal!!!

Vejam a minha cara de zangado... se fiz isto por alguma razão o foi, foi para vos mostrar, olhem que belo, se o mundo fosse assim... não percebem?! Não vêem ou não querem ver!?

Afinal, fiz isto tudo para quem? Vou morrer assim? Toda a minha vida foi em vão, todas as fotografias que tirei foram em vão. Vão morrer comigo. Vou passar sem que ninguém possa retirar nada de útil das minhas fotografias.

Eu/Tu
Tu/Eu
Nós

Nunca chegámos a existir.

Foi só uma miragem, uma alucinação...

Estava sozinho, estive sempre sozinho,

A câmara era para mim, era só para mim, quero-a toda para mim. Vou desfrutar da natureza, e aproveitar todos os seus sabores. Vou abri-la e rachá-la ao meio e aproveitar os seus frutos mais escondidos. Vou beber-te, bebê-la... vou beijá-la nas profundezas, vou extrair esses mistérios, esses cambiantes, esse sabor... vou, mudar de vida (ao contrário)...

Vou continuar a estar só...

Vou morder a língua e a boca, mas a minha própria língua e boca, e vou continuar a ouvir-me assim, indefinidamente. Interminavelmente. Sem ter fim. Sou o gramofone, e o instrumento de audição; sou a velhinha enfiada no armário e sou o armário. Sou o dentro e o fora, olho-me ao espelho olhando-me a mim mesmo.

Espero por ti. Espero poder dizer-te: amo-te. Pois tu és todo o sentido que alguma vez tive na vida. Mas tu não virás porque não podes vir, porque estás presa/o tal como eu, nestas correntes, nestas amarras, neste espaço e neste tempo e neste momento, e nesta linguagem, do qual não conseguimos escapar. Era importante escapar, era importante alcançar a linguagem os gestos dos anjos.

Era importante chegar aquele ponto de vista relativamente universal onde todos somos um só, onde todos descobrimos que entre o meu Eu e o Eu teu só há um Eu, e é sempre o mesmo. O mesmo Eu, o mais íntimo dos íntimos. Eu sou Eu. E é isto que diz toda a humanidade sem se aperceber que se está a referir ao mesmo. Eu.

Mas tu não virás.

E a câmara, assim como tudo o resto, é obsoleto. Já gasto, cansado, inútil... Pertenço, ainda no presente, já ao passado. Sou um morto vivo. Tenho todas as potencialidades mas não sirvo para nada. Tudo o que possa fazer é inútil, tudo o que possa pensar é inútil, todas as fotos que possa tirar morrerão, num arquivo qualquer do computador, na gigantesca teia da web, um dos micronésimos ínfimos bocados de informação.

Sou uma câmara. Tudo o que faço, tudo o que posso fazer, é tirar fotografias, compreender o real. Mas ninguém me vê... Como é que algo pode ser uma fotografia se não é olhado enquanto tal. Qual é a diferença então entre a fotografia e o original?