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A chuva caía, grossa, sobre o vidro da frente do carro. Ao longe viam-se as luzes de outros veículos, na noite cerrada, abafada pelo ruído quente do vento molhado, das gotas grossas, que se espalhavam por todo o lado, à volta do carro.

60, 70, kms/h, ouvia-se o rugir do vento e via-se as árvores a passar, ao longe, agora mais perto, de novo mais longe. Árvores que nunca conheceríamos de perto, embora passasse agora por elas, embora pudesse parar para ver cada uma em pormenor, se assim o quisesse, e sentir a casca grossa, os ferozes troncos, as folhas protectoras e a chuva que caía, grossa e redentora, por cima de nós.

Era um longo passeio, este que fazia por estes caminhos sinuosos que me levavam da serra ao Mar. Antes tinham sido os piratas, os marinheiros e os pescadores a fazerem o caminho inverso. Do porto para a praia e daí para o calmo conforto do lar e dos amigos íntimos com quem se come uma pescada regada com vinho e azeitonas.

Poucos eram no entanto os pescadores que vinham do Mar até ao Céu que quase se podia tocar da imensa altura da Montanha. Em muitos caminhos, em muitas veredas, se perdia o viajante incauto (e todos os éramos, antes da primeira vez), e o objectivo estava longe de se divisar, afinal qual era o encanto de ver a vista do olhar que os raios têm antes de cair? Quem quer olhar o céu da terra, a terra do céu? Ao céu pertencem os pássaros e os anjos, e para lá disso só Deus se arrasta, fielmente, ao seu próprio Bem. Aos homens pertencem apenas as asas do céu, e os peixes do mar, as viagens por estes caminhos de tempo e mar, estas veredas por entre a terra e as raízes que a terra dá para ir buscar a esse céu longínquo e quase inacessível, a luz, a fonte de energia, com que alimenta os restantes animais da terra. Afinal, somos todos filhos do poder organizador da luz sobre a terra disforme. OS sobreviventes do tempo são aqueles que conseguiram submeter a terra à organização de uma lógica até aí invisível. Fizeram da terra não um poço, mas uma fonte de riqueza e de energia. Não o mestre mas a escrava de onde tudo brota. A escrava da reprodução, escrava da alimentação, e hoje podemos abrir a boca e carregar nas teclas e com isso formamos novos padrões até aí inexistentes nesta realidade.

A novidade! É disso que é feito o Mundo.

Mas nada disso interessa os pescadores e os marinheiros, e nada disso me interessava a mim, nessa noite, viajante inato, à procura de uma luz que não vinha dos carros, de um destino que não morava naquelas ruas; mas amando a chuva que batia contra as janelas e os vidros, amando os pára-brisas que escorriam a água do vidro da frente com uma precisão impecável, das luzes do automóvel que alimentavam os reflexos da estrada e da chuva, do movimento, rápido ou lento?, nunca o saberei, das curvas da estrada sob as rodas. As minhas rodas, a minha suspensão, o meu motor, que se desloca a um ritmo imenso, a uma velocidade sem pudor, por sobre todas as estradas, entre todas as viagens, com todos os destinos, por todas as rotas, mas em direcção a um único amor, que às vezes, mas só por vezes, se disfarça, em árvore, em arbusto, em capim, em amoras silvestres... Um disfarce que só funciona por pouco tempo, mas enquanto funciona deixa-me perdido, afeiçoado, apaixonado, por essa visão magnífica de uma framboesa em flor, de um arbusto divino, vestido com as roupas do próprio Deus...

Ouço as rodas por cima da água, puxando a água por baixo de si, envolvendo-a num rodopio que se espalha por todo o lado até só haver água, por cima, por baixo, dos lados da roda, que roda, que roda, rodopia em direcção a lado nenhum, comandada apenas pelos meus braços, pelas minhas mãos. Uma roda de borracha encharcada em água, envolvida em água, ensanguentada em água, mas fazendo uma distinção absoluta entre o exterior e o interior. Mantendo o interior puro, livre de toda a humidade que não estivesse presente já na mistura original. Uma roda que gira e nos guia, ao infinito se fosse preciso, desde que houvesse motor a funcionar e condutor capaz disso...

Não vejo as estrelas, nem as ouço, nas suas explosões magníficas, maiores que todo este nosso planeta, mas sei que estão lá. A quatriliões de quilómetros, a uma distância que supera de longe as minhas capacidades de imaginação, o meu longe mais longínquo. Mas estão lá, tão reais como os pneus, como as jantes, o carro e eu próprio e os meus amigos e o mar e a montanha e o caminho que faço. Talvez até mais reais que as minhas ilusões e amizades e histórias e conceitos e sentimentos. Quem sabe? Afinal continuarão lá, essas mesmas estrelas, muito depois da humanidade acabar tal como já lá estavam muito antes de ela começar.

Conduzo com as luzes das estrelas por cima de mim, e sob mim está a água da chuva que já esteve sobre mim e me observava a quilómetros acima de mim, entre casas e lagares. Ao meu lado está o carro, com todas as suas potencialidades, todos os comandos, todos os factores, todos os botões e alavancas e manetes. Depois estou eu, no meio daquilo tudo. Da chuva, do carro, dos pedais, da viagem e do que trouxe a viagem. Para lá do espaço e do tempo é que eu estou, mas não me consigo descobrir. Penso apenas no que consigo ver e imaginar e isso, tal como as estrelas que estão no céu, é impossível de imaginar na sua real dimensão.

Mas nada disso impede a viagem rumo a lado nenhum. Uma viagem que se tem a si mesma como objectivo, uma viagem que não procura nada a não ser a própria viagem.

Saio do carro e parou de chover. Chego à praia e mergulho nestas ondas frias de onde veio toda a chuva com a ajuda do Sol. Mergulho e a água está fria. Sigo, sigo, sigo, e agora si que não vou voltar. O meu lugar está guardado com as estrelas do mar. Há estrelas em todo o lado, e, mergulhado no Mar, sei, sinto que posso ir a qualquer lado, que mesmo sem me mexer posso estar em qualquer sítio do universo. E, dentro em breve, posso mesmo passar a breve cortina que separa as coisas das não coisas, o lado de fora do universo.

Dissolvem-se as barreiras, as cortinas: vejo, não, não vejo: e é aí que está 'o outro lado'