A vida dos Macacos Falantes
pode ser gira!

Era uma vez um céu Azul que envolvia um planeta, também ele azul, mas cheio de muitas outras cores, sons e sabores. Era um planeta jovem, com apenas 4 anos de idade (medido em anos de planeta) num universo também ainda muito jovem, com apenas 13 anos. O planeta era lindíssimo, para quem gosta de variedade: tinha lagos, oceanos e montanhas e, logo nas primeiras semanas de existência, surgiram nos seus oceanos, moléculas que se autoreplicavam e davam origem a todo o tipo de estruturas extremamente complexas! Ao fim de poucos meses essas moléculas criaram o seu próprio nano-planeta e, no seu interior, foram criando estruturas cada vez mais complexas. Esses nano-planetas eram frágeis, apesar, ou talvez devido, à sua complexidade e acabavam por desaparecer. Mas alguns desses nano-planetas, a que hoje chamamos células, acabaram por conseguir, também eles, replicar-se! Cada planeta dava origem a outro, que por sua vez dava origem a outro e a outro e a outro. Se um gerasse 10, esses 10 geravam 100, que passavam a 1000 e daí a 10 mil e daí ... em poucas gerações, tínhamos biliões de planetas a gerar dezenas e depois centenas de biliões de planetas. Claro que, todos estes planetas – vamos chamar-lhes células, porque são pequeninos e vemos que dependem do todo de forma mais clara do que o planeta azul – acabavam por ocupar todo o espaço disponível e, em breve, havia uma competição entre os planetas, ou células, por espaço, pelos recursos de que precisavam para manter e construir as suas estruturas, para se replicar, etc.

O nosso pequeno planeta azul transformou-se num caldeirão de esfuziante diversidade, pululante de inovações. Qualquer coisa que desse vantagem a um tipo de nano-planeta, digo, célula, iria fazer com que esse nano-planeta se reproduzisse mais que os outros. Visto de fora poderia parecer um jogo, uma brincadeira que explorava os mundos infinitos da complexidade. Mas o que é certo é que estas células, estes nano-planetas, eram quase universos dentro de universos, cada vez mais complexos, com cada vez mais estruturas detalhadas para fazerem coisas cada vez mais complexas. Actuavam, cada vez mais, como agentes “inteligentes”, ou seja, como se fossem capazes de compreender o mundo à sua volta e agissem em função de fins. Mas será que esses planetas queriam sobreviver, ou queriam alguma coisa? Ou seria tudo fruto do acaso? Certamente não pareciam ter uma compreensão real do mundo à sua volta, apenas gestos criados ao acaso e esculpidos pelo tempo que, porque funcionavam bem, acabavam por se espalhar mais do que os que funcionavam menos bem. Era como se o planeta maior fosse uma casa para que tudo o que é possível pudesse acontecer, dentro de certos limites claro, e, dentro de todas essas possibilidades, fossem sendo mantidas aquelas que tinham mais condições para se manter e articular com sucesso, e até crescer, em todo este caos.

Bem, resumindo um pouco a história deste planeta Azul, e com muitas outras cores e sabores e texturas, a verdade é que estes nano-planetas acabaram por se aliar em grandes congregações e fazer uma espécie de mini-galáxias andantes, a que chamamos organismos. Nestas mini-galáxias os nano-planetas podiam agora diversificar-se dando ao conjunto geral, à mini-galáxia, vantagens que um só nano-planeta não conseguiria ter, como por exemplo, locomover-se a grande velocidade, e comer outros nano-planetas ou até outras mini-galáxias. A história, no interior do nosso planeta Azul e de muitas outras cores, tornava-se cada vez mais dramática, aventureira. E era uma aventura em relação a quê? Poderíamos pensar que era em relação à compreensão porque, se todas estas estruturas, operando a partir do mero acaso e esculpidas pelo tempo, demoravam tanto tempo a chegar, por tentativa e erro, a criar organismos que funcionassem bem, por mero acaso, como seria um agente que realmente compreendesse o mundo à sua volta e pudesse antecipar as várias possibilidades, as vantagens e desvantagens de cada uma, tudo na sua mente, e finalmente, escolhesse a melhor. Um tal agente não precisaria de experimentar tudo e mais alguma coisa na realidade, o que demora tempo e pode levar facilmente à dissolução. Ele só precisaria de experimentar tudo e mais alguma coisa na sua própria mente. O que pode ser muito mais rápido, económico e não acarreta grande risco.

Eis que surgem no planeta os primeiros seres falantes. Claro, os nano-planetas já comunicavam, lançando cadeias de moléculas uns aos outros, e estando atentos às moléculas à sua volta. A comunicação é uma invenção muito antiga e comum a quase todas as células e organismos. Mas quando digo “falantes” quero dizer que falavam uma linguagem com uma estrutura que lhes permitia criar infinitas frases com sentido, como estamos a fazer agora. Na verdade eu sou um desses macacos falantes e provavelmente só irei ser lido, se é que alguma vez, por outros macacos falantes.

Os macacos falantes foram os primeiros seres falantes do planeta nesse sentido, de poderem dizer tudo o que querem, de poderem pensar tudo o que lhes apetece. Podiam criar quantidades infinitas de desinformação. A capacidade de criar desinformação sempre existiu, claro. Uma mutação genética tipicamente gera informação inadequada. Um mamífero assustado pode eriçar os pelos para parecer maior do que realmente é. Um pássaro pode avisar erradamente um grupo de suricatos de que um predador vem lá, para lhes roubar a comida quando eles se esconderem. Mas essas são pequenas quantidades de “erros” ou enganos, às vezes intencionais, às vezes sem querer. Os macacos falantes, pelo contrário, tinham uma capacidade, pela invenção dessa linguagem simbólica, com sintaxe e semântica, de gerar mais quantidade de desinformação do que toda a informação presente no seu corpo! Claro que seriam precisas muito mais do que uma vida a dizer disparates para que isso acontecesse. Afinal, uma galáxia de nano-planetas que funcione bem exige quantidades prodigiosas de informação. Mas estes macacos falantes aprenderam também a escrever, ou seja, a deixar a desinformação que criavam para outros. Assim, um grupo de macacos falantes podia criar resmas e resmas de desinformação sendo que outros macacos falantes poderiam, a seguir, adicionar ainda mais quantidades industriais de desinformação. Ao fim de um certo tempo, o único resultado possível seria a extinção do grupo e compreende-se facilmente que nunca mais ouvíssemos falar, nem de macacos falantes nem de nenhuma outra espécie falante, tal como não ouvimos falar de células que possam criar o modificar o seu próprio ADN ao acaso.

O que é realmente espantoso nesta história é que esta espécie falante não se autodestruiu tão rapidamente que eu não fosse capaz de lançar ainda mais desinformação no universo! Vou aproveitar enquanto ainda há tempo! Nunca se sabe quando o fim chegará!

Então vamos lá começar como deve ser!




Era uma vez um céu azul e tu estavas nos meus braços. Carinhosamente afaguei-te a cara e um sorriso mútuo emergiu nos nossos rostos ligados por um fio invisível de prazer.

Conseguia ver, para lá do rosto, os teus olhos, tão belos, e, para lá dos olhos, o olhar que parecia estender-se e perder-se para lá da Eternidade. Disse-te:

« — Acho que é possível, sim, a vida pode ser mesmo muito gira, mesmo como macacos falantes! »

Riste-te, e o teu olhar era um misto de magia, sabedoria e dúvida, como quem está na falésia entre o tempo e a eternidade, como quem pressente os labirintos da mente sem verdadeiramente se arriscar a perder-se neles.




Era uma vez um céu azul, tingido de nuvens brancas e cinzentas e chovia, chovia a potes.

Debaixo dos chapéus de chuva encharcados, Merrygold e Honeypot dirigiam-se ao cinema, mas já estavam muito atrasados e o filme, se calhar, nem era assim tão bom.

— Que raio de decisão esta e que raio de dia este, meu Amor, o filme nem deve ser nada de especial, o que fazemos aqui? Não estará na hora de voltar para casa? Disse Merrygold.

— Bem, acho que é sempre possível ter prazer em tudo na vida, ou quase sempre, retorquiu Honeypot, afinal, enquanto respirarmos e conseguirmos sentir o bater do nosso coração, sem dor, valerá a pena estar vivo!

— Isso quer dizer que queres voltar para casa?

— Quer dizer que quero estar contigo e viver a vertigem da vida, seja aqui ou em casa ou no cinema, ou noutro sítio qualquer.

— Eu acho que significa, disse Merrygold já um pouco desesperada, que tenho de ser eu a decidir o que vamos fazer a seguir!

— O que te daria mais prazer neste momento, neste preciso momento?

— Bem, acho que seria não estar aqui! Disse Merrygold num meio sorriso.

— Então não estejamos “aqui”, pelo menos em imaginação... onde gostarias de estar?

— Num sítio paradisíaco, com sol e mar, quentinho e seco, onde não fosse preciso trabalhar, onde pudesse simplesmente fazer o que me dá prazer o dia todo!

— E, aqui e agora, o que te impede de fazer, ou de ser, o que realmente queres?

— Tudo, claro!m, aqui tudo me impede. A chuva e o frio fazem com que ande com estas roupas pesadas, não há sol nem mar para apreciar e o tempo é condicionado, sempre pouco, para o que se quer fazer. É uma vida à míngua, de tristeza e pesar, com raros momentos de prazer.

— Mas lá, nesse mundo paradisíaco, como seria?

— Lá poderia ser e fazer o que verdadeiramente me apetece e estaria rodeada de todo o tipo de iguarias e prazeres, a vida seria um paraíso!

— Explica-me lá melhor como te sentirias!! Estou a gostar!

— Então, por exemplo, poderia ir à praia e nadar com golfinhos!

— E isso seria giro porquê?

— Porque os golfinhos são espectaculares e nadar com eles também!

— Sabes que há quem diga que as gotas de água são espectaculares, ou até a água em geral...

— São parvos, a água é só água, não nada como os golfinhos, não ri como os golfinhos, nada, é só água, que nos molha e deixa frios.

— E sabes que há quem acho que os golfinhos não são nada de especial...

— Olha, esses são ainda mais parvos, porque não sabem apreciar a beleza dos golfinhos! Puff.

— Então mas já pensaste como cada gota de água tem uma história única e irrepetível? Elas formam-se a milhares de metros de altura, em sítios frios, de onde por vezes se vê as estrelas, mas são agregados de moléculas que vêm, algumas do mar, outras da transpiração dos animais, outras da transpiração das plantas, outras de riachos, de poças de água e de inúmeras outras fontes. Elas ascendem, separando-se da sua vida anterior, e viajam, cada vez mais alto...

— Ui ui ui, grande fantasia!

— Mas é a mais pura das realidades, tudo isto é real!

— Mais ou menos...

— Ascendem, pelos espaços abertos, até encontrarem outras moléculas, muito parecidas, ou até iguais, mas com histórias muito diferentes.

— E o que é que isso interessa?

— É a realidade! Cada gota de água traz moléculas que já foram o interior de um peixe ou de uma águia, de uma planta, de um cocó, de um rio, do mar, de uma lágrima, de um orgasmo, de um desportista cansado mas em êxtase... milhares de eventos que se confundem, depois de separados do seu contexto pelo calor, e de ascenderem ao céu, se reunirem enfim em gotas e voltarem a cair à terra, que pode ser um rio, um passeio sujo, ou uma cabeça desprevenida, sendo que, nesse caso, rapidamente poderão fazer parte, algumas dessas moléculas, do próprio corpo em que caíram. Tudo isto é tão factual como o que contaste dos golfinhos. Não percebo porque é menos belo.

Merrygold olha para a chuva e deixa cair o chapéu de chuva por alguns momentos. A chuva bate-lhe na cara e uma intensa sensação de prazer percorre-lhe o corpo. Por algum motivo, sente como que se estivesse a nadar com golfinhos e que o sol, por detrás das nuvens, lhe sorri. Volta a pôr o chapéu para cima e diz:

— Sabes, és um bocado totó, mas acho que é por isso que gosto de ti, também por isso. Vamos mas é voltar para casa.

— Como queiras meu Amor, contigo sinto que estou no Paraíso!

— Bem, vamos criar o nosso próprio Paraíso.

— Um paraíso dentro de um grande Paraíso.

— Ou um paraíso dentro de um Inferno. Essa parte já não sei Honeypot, mas acho que sim, a vida pode ser gira, mesmo quando chove e o sol se esconde entre as nuvens.

— E sabes porquê?

— Porquê?

— Também não sei, mas acho que é porque só existe o Todo e tudo o que vemos, todas as suas partes, são meros representantes. Incluindo tu e eu.

— Porquê representantes, porque não meras partes?

— No sentido em que tudo está interligado com tudo o resto e, portanto, só se consegue compreender bem qualquer uma das partes, seja uma gota de água ou uma pessoa, compreendendo tudo o que lhe deu origem, a sustém e lhe dá contexto e sentido. E, nessa visão maior... (cala-se)

— Nessa visão maior...?

— ...

— Nessa visão maior tudo é belo, será isso?

— Sim, talvez, e tudo, ou quase tudo, vale a pena!

— Portanto, se bem te compreendo, quanto mais estivermos abertos ao mundo e mais o compreendermos mais Felizes poderemos ser.

— É nisso que eu acredito sim. Tem sido essa a minha experiência até agora.

— És mesmo totó, mas eu gosto de ti na mesma! Tens muita sorte em ter alguém como eu a teu lado sabias? Outra pessoa não iria aturar essas coisas!

— Nem eu mesmo me aturo! Vamos mas é pôr uma música e deixar que as pedras da calçada dancem que é para, quando chegarmos a casa, sermos nós a dançar num mundo que, todo ele, dança.

— À dança!

— À dança!!




Conclusão para os mais distraídos: “a vida de macacos falantes pode ser gira”. Aliás, pode ser muito gira! Só é preciso não bloquear o Mundo inteiro, que quer vir ao nosso Encontro, entrando pelos nossos poros, pelo nosso coração, pela nossa alma, pela nossa mente, pelo nosso olhar, como um Amante Eterno, que nunca deixou de nos buscar.