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"Como dizer que te amo... mais que às nuvens e ao vento, mais que ao cheiro de uma nova estação... mais que aos dias e às noites. E que por ti romperia o universo e deitaria abaixo deuses e duendes, e anjos e fantasmas. Nada se pode opor ao meu amor."

"Só há uma forma de Amor verdadeiro: o fim do tempo, o fim do espaço, o fim da vida. Quando encontramos isso temos tudo, e a vida ou a morte já não nos podem afectar. Não existimos, ultrapassámos a própria existência. É isto o Amor: o Encontro."


"ali é que era bom..."

Prelúdio - O Saudosismo Português

Eu não gosto de me retractar mas neste caso tenho de fazer uma excepção. Muitos dos textos e poemas que escrevi entre 1997 e 2000 foram inspirado por muitas horas a ouvir Madredeus e Delfins (e também Trovante, Jorge Palma, e muitos outros), aliadas a uma profunda insatisfação com a minha vida. O resultado final disto foi perder o meu verdadeiro rumo para me perder numa viagem, num sonho, impossível, puéril, que não tinha nada a ver comigo nem com o que eu queria da minha vida. Aprendi às minhas custas que para sair da prisão, muitas vezes, não adianta lutar com a porta, basta sair. Porque somos nós que, à custa de pensar 'gostava tanto de estar ali' acabamos por transformar a saída numa luta, e a luta numa artimanha, um passatempo que nos permite escapar da nossa própria vida e das coisas que queremos realmente fazer. Daí as prisões, os sonhos do impossível, a viagem; eles não são o obstáculo, são a protecção, que arranjámos para não termos carregar o fardo de saber aquilo que realmente queremos, e de o realizarmos. Em vez disso ficamos com uma luta que não é a nossa, para irmos em direcção a um fim que também não é o nosso, e tudo, tudo, para não termos de ler o tal livro, não fazer as tais coisas, não fazer aquilo que desde sempre sabemos ser o nosso objectivo.

A promessa dos saudosistas é de facto de um prazer inesgotável, de uma exuberância da plenitude dos sentidos - enquanto se sonha - só enquanto se sonha. Porque o verdadeiro conteúdo da promessa é simplesmente o do fim, o de um espaço sem espaço, e de um tempo sem tempo, que só se consegue à custa do desiquilíbrio total, da fuga total, de nos perdermos completamente num olhar que não é o nosso. É por isso que o Amante D.Quixote gosta da sua amada bem longe, presente na mente, mas ausente de tudo o resto, como um ideal inatingível. Não se trata de lutar para a conquistar, trata-se de se dedicar a um sonho impossível, precisamente por ser impossível. É a impossibilidade que o torna atractivo, é a impossibilidade que permite a fuga. Não a fuga das galinhas (que sempre seria alguma coisa) mas a fuga para o Alentejo, onde o tempo se dilata e toda a vida é passada, uma contemplação do que poderia ter sido, do que seria se... Ai!! Estou tão farto disso!!

Só para dar um exemplo das coisas que me embeveciam na altura eis a letra desta música cantada pela Amália:

"Pus o meu Sonho no navio
E o navio em cima do Mar
Depois abri o Mar com as mãos
Com as mão para o meu sonho
Naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
Do azul, do azul das ondas
Entreabertas.

E a cor que escorre dos meus dedos
Colore as areias desertas.

O vento vem
Vindo de longe
A noite se curva de frio

Debaixo da água
Vai morrendo o meu sonho
Vai morrendo dentro do navio

Chorarei, quanto for preciso,
Para fazer com que o mar cresça
E o meu navio chegue ao fundo
E o meu sonho
Desapareça."

in Amália Rodrigues, Com Que Voz...

Fiquei muito impressionado com o que aconteceu, não tanto por me ter acontecido a mim (já estou habituado a fazer coisas não muito inteligentes) mas por fazer parte de toda uma cultura. Por ser cantado pela Amália e por tantos fadistas, por ser a essência das paisagens Alentejanas (onde a música dos Madredeus se inspirou) e de grande parte da cultura portuguesa, por estar presente em tantos escritores e cantores. Estou convencido que esta cultura do "ai gostava tanto de estar ali!!!" é sumamente prejudicial, pelo menos aos meus interesses, mas também aos interesses de qualquer pessoa que queira avançar na vida. Por isso, foi com alegria que descobri outros cantores, bem mais arrojados nas suas vidas e músicas, como Paul Simon, Sting, e sobretudo os U2.

O meu lema agora é: se queres vai, não sofras por alguém, não fiques na prisão, porque não estás a ajudar, estás simplesmente a 'agonizar com' e nada se ganha assim. Se estás com A e gostas de B (seja B uma pessoa, uma ideia, um modo de vida), e se estar com A é incompatível com atingir B, toma uma decisão real. Isto é não tentes descobrir 'o que é melhor fazer' (pois nunca o descobrirás, depende sempre do ponto de vista) e, em vez disso, descobre, deixa aflorar à consciência o desejo sempre amordaçado: descobre 'o que é que quero fazer', sê apenas fiel a ti, o que é que desejas verdadeiramente? Se for atingir B então deixa A imediatamente, pois estás a enganar A, a trair B, e a violar-te a ti próprio/a, e daí dificilmente virá felicidade para alguém. A verdade pode magoar, mas raramente faz mal (quando contada com consideração, é claro). É por estas e por outras que há tantas pessoas infelizes por aí, a queixarem-se da vida que têm, da que poderiam ter tido, de tudo o que poderiam ser, se... se... se... E depois não fazem nada, acham que estão a ser muito bons por conseguirem desejar algo, mesmo que nunca o venham a ter.

Se eu tivesse sido corajoso e feito o que devia (deixar fluir os sentimentos, assumir o que sentia e agir em conformidade, em vez de me sentir culpado, preso e dividido) teria logo percebido o logro, a mentira, a armadilha, em que eu próprio me tinha enredado, para evitar saber certas verdades acerca de mim e da 'Delfine' (personagem de 'A Viagem') para evitar 'viver'.

No fundo o problema principal é o da honestidade, mas também o da integridade. Ser íntegro (ter as acções consonantes com as ideias e com o sentir e com tudo o que somos) é tão importante como ser honesto. Percebi isto tarde de mais, depois da tragédia. Depois da Delfine (a do texto 'A Viagem') se ter revelado apenas como a soma de todos os meus fracassos, do meu supremo desiquilíbrio, da minha suprema alienação.

O fim da alienação (falo por mim) não se encontra num qualquer outro olhar. É o fruto daquelas coisas que disse: honestidade, integridade, de 'seguir o meu caminho' (como alguém que eu conheço está sempre a dizer). Quando sigo o meu caminho, e faço aquilo que penso, tudo se ajusta e eu e o mundo voltamos a ser um. O percurso que fiz e que está exposto em muitos destes escritos exprime algo de sincero: a necessidade do fim da alienação; mas a resposta que procurei tinha o seu quê de insincero, tinha algo do tipo 'deixa-me estar...' Em parte era uma verdadeira procura pela autenticidade, mas em grande parte era também uma grande procura pelo conforto, e acabou por atingir o seu paroxismo na obsessão pela ideia de dois olhares que, juntos, continham o 'fim do mundo' o 'fim do tempo'. É claro, não estou a dizer que não senti o que senti, que não vi o que vi, mas procurei o que não devia, alterei a ordem dos factores, e isso é inegável. Pus o prazer do fim à frente do prazer de Amar alguém. Amar tornou-se um veículo, um meio, para o nada; o fim, prazeiroso, seguro, extirpado de tudo o que houvesse para fazer; de todos os objectivos para lá da morte, para lá desse olhar, desse tempo sem tempo, desse espaço sem princípio nem fim. Mas a morte não é o fim, é a vida que importa viver. Descobrimos isso quando ficamos fartos de 'estar mortos', quando vemos, na pele, no dia a dia, que ela não nos traz a paz que ambicionámos, ela não é o clamor, é simplesmente o vazio.


Dos textos desta página o primeiro (A Viagem) foi o que escrevi mais tarde, para retractar o espírito do saudosismo que me alimentou. Os outros vão dos mais antigos para os mais recentes e começam com a «Tragédia» (um abandono que não correu pelo melhor), «Travessia» (o 1º princípio que ainda hoje mantenho, juntamente com o segundo 'respeitar o meu próprio caminho'), «Sem Tempo» (que retracta a emoção que o fim da vida me proporcionava), «Prisões» (viver inautênticamente), e «Sonho» (que é uma espécie de Sem Tempo, versão quase a concretizar-se).

A única coisa que tenho a congratular-me com esta viagem é o facto de já ter passado. É daquelas aventuras de que só queremos distância. Se eu tivesse descoberto o Fogo dos U2 ("what you don't have you don't need it now / what you don't know you can feel it somehow") em vez do Mar dos Madredeus, certamente a história teria sido bem diferente. Mas foi o meu caminho e, de certa forma, desejei-o, ou não teria acontecido.

Dito isto, os poemas valem o que valem, e, envolvidos que estão nesta história de ilusões, continuam a exprimir amor, e, tal como um quadro não é menos belo por provir da imaginação do artista em vez de se inspirar numa paisagem real, também estas palavras não são menos belas nem menos intensas por se alimentarem de uma ilusão minha. Ou talvez, pelo contrário, elas sejam tão intensas e belas precisamente por se alimentarem de uma ilusão, e daí a sua utilidade!
021208

A Viagem
Sem tempo
Preso
Sonho
Tragédia / Travessia (estes dois, mais antigos, em formato pdf)


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