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Sobre a aceitação... (terceira parte)

 

Pedro — Logo ao princípio disseste que quando nós não aceitávamos o mundo o mundo também não nos aceitava. Podias dar um exemplo, para se tornar assim mais visível, mais prático.

Guilherme — Olha tanta coisa, quando nós somos teenagers, por exemplo, e temos raiva com o mundo, não dá em nada. Ou nós evoluímos ou então caímos nos adultos amargurados que depois caem para o outro lado (não compreendem os teenagers ), ou ficam sempre amargurados de outra maneira [com o mundo].

P: A não-aceitação é uma espécie de cisão com o exterior não é? Ou seja, é como se nós nos afastássemos e quiséssemos estar isolados...

G: É. Eu diria mais que a não-aceitação é uma fase imatura, tem a ver com a imaturidade. Uma pessoa quando aceita, amadurece. É porque amadureceu. Implica amadurecimento. E muita gente no nosso tempo não amadurece, são teenagers, são crianças, só que, pronto... tu vês muita gente hippie, punk, e outros, que, com o passar do tempo, ou fliparam completamente, ou resignaram-se e então ou abraçaram o sistema ou ficam a dizer mal do passado...

Outro exemplo, quando nós não aceitamos a doença, a doença corrói-nos completamente – não percebemos o ponto. Podemos até eliminar os sintomas da doença, mas a doença vai aparecendo de outra maneira, como se aparentemente vencesses, mas não, ela depois aparece noutro sítio. Enquanto que, se aceitarmos a doença, aprendemos a lidar com ela; porque a doença tem uma função; a doença é mais uma das muitas coisas que têm como função despertarem-nos. Despertarem-nos para muitos pormenores, um deles é a nossa química, a nossa energia... e se nós soubermos lidar com a doença, ela é nossa amiga, ela vai-nos dizer que há certas alturas em que é altura de parar, fazer certas coisas, mudar outras, etc. Isto é ao longe, mas se a doença nos «cai em cima» é uma altura de retirarmo-nos do mundo, é uma altura de meditarmos. Ao mesmo tempo a doença está a fazer uma purificação em nós. Se nós meditarmos durante essa fase, entramos num nível mais alto de purificação e de consciência. E quando as pessoas não aceitam – e o grosso das pessoas não aceita – estão a lutar contra a doença [e a perder a viagem]. Aliás a palavra “lutar” – lutar contra a droga, lutar contra a sida, lutar contra a pedofilia, etc – é mais um dos sintomas da não-aceitação. Mas voltamos ao mesmo, aceitação não significa dizer que está bem, aceitação significa compreender as subtilezas que levam àquelas situações, que são situações de extremo, situações de aprendizagem . Se não forem aquelas hão-de aparecer outras, podes ter a certeza. Hão-de aparecer sempre situações de extremo. E a questão não é tapar umas e aparecerem outras e passarmos a vida a lutar, e sempre frustrados, porque, no fundo, quem luta, será no fim sempre derrotado, mas sempre derrotado. Se não lutarmos e soubermos lidar com as situações, saímos sempre riquíssimos, podemos ter perdido os dedos, o cabelo, ou isto ou aquilo, mas saímos ricos. Por isso, é só olhar à volta e veres que toda essa conversa é lutar, lutar, lutar... e o pior é que isso, subtilmente, alimenta. E gasta-se muita energia...

P: Alimenta o quê?

G: Alimenta o mal, alimenta a própria situação que se está a combater. Uma pessoa que guerreia contra uma situação está a alimentá-la. Quando uma pessoa quer tudo bom para os filhos e faz tudo pelos filhos, enfraquece os filhos, eles não valorizam nada. Quando uma pessoa se afasta e protege das bactérias e dessa cenas todas, fica frágil, qualquer coisinha...

P: Mas nesse exemplo dos filhos, estás a dizer que a pessoa não está a aceitar?

G: [A pessoa não está a aceitar os filhos, nomeadamente a sua individualidade.] Não está a compreender, a compreender por exemplo que há uma medida certa para as coisas. E que, uma pessoa que quer proteger demasiado os filhos, é porque está parcial na vida, ou seja, tem uma frustração perante a vida e quer realizar-se através dos filhos. E isso é muita mau, os filhos não nos pertencem. E ao protegê-los demasiado enfraquece-os. Ao querer coisas boas para os filhos, está a trazer coisas más. Os filhos têm o seu caminho. Por isso o lutar pelas coisas, e toda a nossa vida é baseada nisso. Tu abres o telejornal e é só desgraças, é só lutar, lutar, lutar.

P: Eu vejo esta cena um bocado como fazer uma luta de Kung Fu, que não é tentar vencer o outro mas é cooperar. Isso em parte pode-se fazer também na vida, não é?

G: Tem que se fazer na vida.

P: Que é acompanhar o movimento. A sensação que eu tenho é que quando não há uma aceitação, há uma espécie de cisão, ou seja, é como se o mundo estivesse a ir numa certa direcção, as coisas estivessem a tomar uma certa direcção e nós simplesmente estivéssemos a andar noutra, não em harmonia; e aí o que vai acontecer é que vai haver montes de choques e colisões. E vai haver digamos essa “luta” que por vezes até pode ser inconsciente e que nós podemos até por vezes pensar que são as coisas que estão contra nós. Mas na realidade não é bem isso, porque as coisas não estão propriamente contra nós. O que há é uma des-sintonia, como se a pessoa estivesse a viver isolada do resto do mundo.

G: Exactamente. Como se tivéssemos um sistema fechado. E tal como diz a termodinâmica um sistema fechado tem sempre tendência a entrar em caos. Não podemos estar fechados, temos de estar sempre ligados com o todo.

Depois há pequenas coisas práticas. Isto não se esgota aqui. Por exemplo, toda a gente tem o seu grau de aceitação. Agora há momentos em que a gente não aceita, mas se a gente se retirar um bocadinho, meditar e aceitar até mesmo essa própria não-aceitação... a aceitação passa também por isso. Se a gente aceitar que é humano haver a não-aceitação, é humano ver nos telejornais as pessoas em luta... estás a ver?, a aceitação também passa por aí. Passa por compreender a não-aceitação.

De maneira que a aceitação é sempre um estado de espírito interior e não tem tanto a ver com uma coisa directa de acção – de sorrisinhos e «tens razão» e «tudo bem» – porque isso não é aceitação. A aceitação pode ter muitas expressões, mas mesmo que nós nos chateemos, devemos depois, ou ficar em silêncio e... aceitar tudo. Porque aí há uma grande diferença. Qualquer acção, quer seja aparentemente agressiva ou harmoniosa, quando feita com aceitação, é sempre harmoniosa – pode ter cores muito diferentes mas é sempre harmoniosa. Uma acção feita sem aceitação, quer seja agressiva ou aparentemente harmoniosa, é falsa, é sempre violenta, altamente violenta. Por isso, aparentemente torto ou direito, tanto faz, porque quando há aceitação/compreensão é sempre direito...

P: Pois, eu acho que uma das coisas que se aprende muito com o Kung Fu, mesmo com os treinos e com a prática da luta, é exactamente que estar em harmonia com o outro muitas vezes implica uma certa agressividade. Que a pessoa não expressa com uma violência, digamos assim, profunda, mas que até pode eventualmente ter momentos em que é expressada violência, porque se está a tentar transmitir alguma coisa ao outro que, naquele contexto, faz sentido...

G: Exacto...

P: Nós vivemos numa sociedade com muitos aspectos repressivos, os patrões, a hierarquia, escalas sociais, valores para classificação das pessoas, «tu és bom, tu és mau, tu és isto, tu és aquilo, tens de fazer isto, para evoluíres» etc [O problema é que nós já fomos muito ‘ comidos' pela sociedade, na escola, no emprego, nas relações emocionais. Estar aberto ao exterior, na nossa sociedade, é muitas vezes deixar entrar manipulação, alienação, jogos de poder, etc. Ser receptivo, neste contexto, é ser um escravo, um alienado. Por isso nos resguardamos do exterior e pensamos, em sociedades manipuladoras, que ser homem é melhor do que ser mulher, que mandar é melhor que ser mandado, pois permite seguir o seu caminho, ser livre, não ser alienado. mail ] e muitas vezes aceitar implica rebelar-se muito...

G: Exactamente...

P: E essa aceitação, como estavas a dizer, não é dizer sim no exterior, é compreender – que é juntar a nossa experiência pessoal, o nosso caminho, com a aceitação, que dá a compreensão, mas muitas vezes isso implica... uma grande pujança na resposta, não é?

G: Exacto, principalmente no início, quando se é teenager, quando se está na mó de baixo... Sem dúvida. E nas lutas de Kung Fu é exactamente isso, vamos buscar coisas escondidas, que não conhecemos, coisas muito primitivas, que trazemos ao de cima e, não nos identificamos com elas, harmonizando-as. Sentimos medos, de competitividade, de egos, etc ... eles podem vir ao de cima mas nós vamos sempre ali em sintonia com eles. Não nos identificamos com eles, não somos contra eles, não somos a favor deles, e olhamos para eles, e, ao aceitarmo-nos, eles dissolvem-se. Eles têm uma função, e uma função primitiva, mas, se nós nos elevarmos, eles deixam de ter a sua função e transformam-se noutras coisas, dissolvem-se.

Por isso, é o estado da humanidade, não é certo nem errado, é uma questão prática – não vale a pena estar a dizer se é certo ou errado – é o estado em que estamos. Só que, se nós entrarmos no caminho de que temos estado a falar, da compreensão, faz uma grande diferença. É um sentido prático, isto é uma conversa prática. E quando praticado é como uma ciência qualquer, como a física, etc, não é uma conversa teórica, bonitinha. Não é imediatamente demonstrável, porque já envolve o vivo, o psiquismo, já é muito mais difícil, mas quando uma pessoa medita e está neste contexto, é como a ciência, acção-reacção, bolas de bilhar, é semelhante, muito similar. É neste sentido que a gente fala na aceitação, num sentido prático – não tanto num sentido de bonito, de religioso, de ideal, que nunca se há-de alcançar – mas de trazer a harmonia ao aqui e agora.

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