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Certo e errado (objectivo) versus experiência (subjectivo).

Olhemos para este desenho:

Este é o chamado cubo Necker, e é famoso por ser um exemplo simples de uma imagem que pode ser vista de duas maneiras: um cubo visto de cima ou um cubo visto de baixo (mas não as duas ao mesmo tempo). Isso demonstra um facto curioso da vida, a maior parte das situações pode ser vista não apenas de duas perspectivas diferentes mas de muitas, todas elas diferentes e por vezes incompatíveis.

Face a esta diversidade de interpretações há muitas aproximações possíveis. Num extremo temos a atitude da chamada hard science (física, química, astronomia, etc) que é a de ignorar tudo o que possa pertencer ao domínio do subjectivo, que dependa de uma interpretação e focar-se no que é seguro/inquestionável. Se aprofundarmos um pouco o tema (ver subtilezas ) veremos que isso é, no limite, impossível, visto que uma lei da natureza é sempre uma interpretação de fenómenos. No entanto esta estratégia – unida a uma capacidade criativa e imaginativa e a uma liberdade de pensamento quase infinitas da parte dos cientistas – tem trazido resultados espectaculares na nossa compreensão do cosmos.

No outro extremo temos a arte, sobretudo a arte mais experimental que procura levar ao limite as nossas capacidades de interpretação. Um exemplo desta aproximação é o desenho da famosa personagem de Saint Exupéry O Princepizinho:

 

 

Ver neste chapéu uma jibóia a comer um elefante é de facto um feito da imaginação!!

Nesta perspectiva seria possível ver as verdades mais profundas da existência em qualquer acto ou facto, mesmo os mais vulgares.

“The contemplative whose perception has been cleansed does not have to stay in his room. He can go about his business, so completely satisfied to see and be a part of the divine Order of Things that he will never even be tempted to indulge in what Traherne called "the dirty Devices of the world." When we feel ourselves to be sole heirs of the universe, when "the sea flows in our veins ... and the stars are our jewels," when all things are perceived as infinite and holy, what motive can we have for covetousness or self-assertion, for the pursuit of power or the drearier forms of pleasure?” Huxley, The Doors of Perception .

Na nossa época vivemos uma situação de alguma perplexidade (o que não deixa de ser hilariante) face ao papel e importância do subjectivo. Em grande parte isto deve-se ao ênfase que tem sido dado ao rigor da ciência, que nunca foi mais importante que a actividade criativa dos cientistas. Este ênfase no rigor, no objectivo, fez-nos cair no extremo de nos obrigar-nos a nós próprios a esquecer que todas as leis científicas são subjectivas, são interpretações de observações. A ambição de encontrar uma imagem de uma visão do mundo inteiramente objectiva e certeira, afastada de qualquer erro, ilusão ou incerteza, afastou-nos das religiões e criou um mundo cheio de electrões, galáxias, e teorias psicológicas e sociais. Nasceu a ciência do homem, da sociedade, do mundo. Mas neste mundo de máquinas — comendo, reproduzindo-se, ampliando o seu conhecimento, fruto de outras máquinas mais primitivas, e desenhando novas máquinas e estruturas cada vez mais complexas — a beleza, o sentido, o amor do mundo perdia-se. E, se tivéssemos ficado por aqui, só talvez o suicídio em massa, perante este mundo horrivelmente vazio de sentido, fosse a saída honrosa.

No entanto, paralelamente ao crescimento do conhecimento objectivo, foi também crescendo a fome por interpretações de amor. Ou seja, pelo bem ou mal, belo ou execrável, pela fragrância do mundo. Cresceram pois simultaneamente com o sucesso da ciência, o sucesso das religiões. Do Oriente e do Ocidente, hedonistas ou masoquistas, altruístas ou individualistas, intelectuais ou afectivas, prometiam devolver a cada acontecimento uma explicação superior. Tal como as linhas da folha se levantavam para dar lugar ao cubo, também os acontecimentos meramente casuais do mundo se levantavam para formar a imagem esplendorosa da Segunda Vinda de Cristo, da Era de Aquário, da recompensa ou castigo pelo Karma de vidas anteriores, de preciosos ensinamentos, de recuerdos de vidas passadas, uma ousada sinfonia se levantava, lavando o cepticismo dos descrentes e mostrando-lhes um mundo cheio de cor e vigor. Cheio de vida e vitalidade. Cada gesto um sinal, um símbolo do divino, no caminho do Amor chegávamos à Verdade Suprema, a verdade que não se vê, mas só se sente, só se experimenta, nas veias, no coração, num ponto da cabeça que não se vê a não ser “por dentro”.

O problema com todas estas interpretações não é o que elas contam, mas o que deixam de fora. É verdade que o cubo Necker pode ser visto de cima. Sim, está correcto. Mas também pode ser visto de baixo. É verdade que o chapéu do princepezinho pode ser uma jibóia a comer um elefante, mas também pode ser muitas outras coisas e todas elas estão, subjectivamente, certas.

Por isso é muito difícil falar do subjectivo. Uma pessoa pôs um anúncio no jornal a perguntar se   havia alguém que queria ser comido vivo. Encontraram-se duas pessoas que levaram a cabo o canibalismo voluntário e consensual. Haverá algo condenável nisso? Sim e não. Muitos sins e muitos nãos. Porque as situações que nos envolvem, que envolvem pessoas, têm um grau de complexidade tão extremo que as interpretações que se desprendem delas são praticamente infinitas.

Subjectividade Objectiva

Poder-se-ia pensar que estávamos então perdidos, talvez o mundo fosse uma viagem para o Amor ou uma estrada para a decepção, ou ambos, ou nenhum, ou muito mais do que isso, e se, tudo se pode dizer que está certo num certo contexto, numa certa interpretação, então afinal o que se pode dizer acerca do subjectivo?

Pode dizer-se o que é comum a todo o subjectivo: o desejo de Ser Mais: de ter mais prazer, de ser mais feliz, mais pleno… A estrada para isso é ver um mundo cada vez maior, cada vez mais amplo, que una a objectividade da ciência, no rigor da linguagem, dos factos, e também na sua liberdade de pensamento e criatividade, mas que amplie o seu campo de estudo aà interpretação de outros fenómenos, que se deixe cativar por eles, envolver, experienciar, numa viagem que só pode ser pessoal e intransponível, num caminho que é único e irrepetível. A unidade atinge-se no todo, é aí, na totalidade possível de visões, não na divisão, mas na integração, não no julgamento, mas na aceitação / compreensão, que rege o caminho para a expansão: a expansão da consciência, o acordar de todos e cada um dos sonhos que temos dentro de nós.

Subtilezas

Numa primeira análise podemos dizer que há dois conjuntos de factos acerca do cubo Necker. Um é objectivo e diz respeito às propriedades das linhas que o constituem. O outro diz respeito às interpretações, tridimensionais ou outras, que fazemos dessas linhas. Assim por exemplo a cor das linhas, os ângulos que estabelecem umas com as outras, os pontos em que se unem, o seu comprimento, grossura, e até o tipo de tinta ou papel utilizado, etc, tudo isso seriam propriedades objectivas da imagem, enquanto que a descrição tridimensional do cubo diria respeito não à própria imagem mas à interpretação que fazemos dela.

O problema é que a descrição das propriedades bidimensionais da figura também é uma interpretação . Por exemplo, poderíamos dizer que a imagem é constituída por quatro linhas verticais, mais quatro linhas horizontais, mais quatro linhas oblíquas. Mas na realidade essas linhas são atravessadas por outras. E se temos uma intersecção de linhas porque não dizer que, em vez de duas linhas que se intersectam, temos quatro linhas unidas num mesmo ponto? São descrições equivalentes, mas que atribuem um número de linhas diferente à mesma imagem. A conclusão inevitável é que o número de linhas é também uma propriedade subjectiva. Mas reparem agora que seria possível dizer que em vez de termos uma linha preta de 1cm de comprimento, teríamos uma linha de 2cms só que só 1cm é que estaria colorida a preto. Daqui podemos inventar infinitas descrições da imagem, todas elas equivalentes relativamente à imagem visível resultante, mas diferentes relativamente ao número, forma e intersecção das linhas.

Para evitar este problema utiliza-se aquilo a que se convencionou chamar a navalha de Ockam que afirma que, de todas as explicações equivalentes, devemos escolher a mais simples. Este critério de simplicidade é na verdade uma das bases mais importantes do crescimento do conhecimento científica, porque nos permite concentrar nos factos e não nas interpretações. Por exemplo, Heisenberg e Schrödinger chegaram mais ou menos ao mesmo tempo a uma formulação matemática da mecânica quântica. No entanto, esta formulação era completamente diferente. Durante algum tempo colocou-se a questão de saber qual das duas (se é que alguma) seria a correcta, até que Paul Dirac mostrou que elas eram equivalentes (dariam sempre as mesmas previsões face às mesmas condições iniciais). A partir desse momento considerou-se que as duas formulações eram igualmente correctas, sendo indiferente usar-se uma ou outra.

Quando aplicamos este raciocínio a electrões e protões é como dizer: “é o que é, não interessa a maneira como explicas, a realidade está para além de qualquer descrição, tudo o que temos, através da linguagem, mesmo de uma linguagem matemática, são meras aproximações”. Mas no caso da química, da biologia celular, da neurociência, etc, os modelos seleccionados pela navalha de Ockam são vistos muitas vezes, não como uma mera interpretação, mas como a verdade. Face a esta verdade absoluta e incorrigível o mundo obscuro da mecânica quântica e sobretudo, as especulações espiritualistas da religião, aparecem como pântanos indesejáveis, que rodeiam a bela ilha da ciência pura com o imenso e pestilento fedor da dúvida.

Para os advogados desta “ciência pura” a única maneira de progredir é secar estes pântanos ardilosos a partir da ilha. Estes pântanos onde todos os esforços, feitos de dentro, só podem aprisionar ainda mais o amante da verdade, no seu esforço de se libertar da dúvida. Por isso, para os seguidores do positivismo lógico saído do Círculo de Viena no princípio do século passado, não basta atacar a ciência e a religião. É sobretudo com o crescimento e desenvolvimento da ciência dura ( hard science ) a todos os níveis, que o conhecimento científico irá substituindo e eliminando o conhecimento místico e religioso de todos os buracos onde se foi refugiando. Esse seria, para o cientista, o supremo esforço (por e para o amor) de iluminar a sociedade.

No entanto, estes cientistas esquecem que, antes de chegarmos ao ponto de aplicar a navalha de Ockam foi preciso ter algo em que a aplicar. Ou seja, foi preciso investigar inúmeros modelos matemáticos, inúmeras concepções do mundo e do real, inúmeras formas de explicar, combinar, descrever as interacções que se sabia existirem no mundo atómico. Na fase criativa a navalha de Ockam não faz sentido, pelo contrário, é a liberdade e a criatividade que são a palavra de ordem.

No que se refere à busca espiritual, uma esmagadora maioria está completamente clueless (completamente perdidos) em relação ao sentido da vida. Para a esmagadora maioria de nós, portanto, trata-se de inventar, experimentar, explorar, de forma livre, despreconceituosa e descomplexada tudo o que foi dito, tudo o que foi pensado e sentido, tudo o que foi experienciado, e daí retirar tudo o que fizer sentido e tiver sabor (agora sim, a navalha, o deitar fora). É nessa experiência, em direcção à totalidade, à diversidade, à visão mais próxima do todo, que poderemos encontrar talvez as verdadeiras fundações de uma sociedade futura apoiada no amor e na inter-compreensão.

A repressão e os monopólios, por mais bem sucedidos que possam ser num certo campo, n sucedem na sujeição do bom ao mau, na serventia do mais perfeito ao que ainda está a crescer. O mesmo princípio de que, afinal, também eles se alimentam.